I – GUERREIRO E
PATRIOTA
D.
Pedro I, oitavo rei afonsino, reinava em Portugal, quando na festa litúrgica de
S. João Baptista, a 24 de Junho de 1360, nascia em Cernaje do Bonjardim (?), Nuno
Álvares Pereira, filho natural de Frei Álvaro Gonçalves Pereira - cavaleiro
hospitalário de S. João de Jerusalém – e de Dona Irina Gonçalves do Carvalhal.
O prior do Crato merecia a melhor atenção de D. Afonso IV, pai de D. Pedro I,
pelo valor do desempenho na batalha do Salado. Interessado em astronomia era
amigo do conceituado mestre Tomás Guedelha, afamado leitor de horóscopos, a
quem solicitou a predição da sorte do recém-nascido que foi resumida em três
palavras, guerreiro, invencível, santidade. O facto curioso talvez possa
indiciar a particular atenção paternal com a educação deste filho apesar dos
muitos irmãos. Um ano após o nascimento, o menino foi legitimado por decreto
real, podendo receber educação cavalheiresca própria de gente nobre. Aos treze
anos foi bem aceite na corte como pajem da rainha D. Leonor, para pouco depois
conquistar brilhantemente o estatuto de cavaleiro. Aos dezasseis anos, em
obediência à vontade paterna casou a 15 de Agosto de 1376 com D. Leonor de
Alvim, jovem viúva e poderosa fidalga de Santa Maria de Pedraça, de quem teve
três filhos, dois varões que morreram cedo e uma donzela que viria a desposar
D. Afonso, filho natural de D. João I.
D. Fernando apercebendo-se dos
perigos da paz assinada em Santarém, negociou com o rei vizinho o casamento de
D. Beatriz, sua filha, com o herdeiro do trono de Castela. A morte inesperada
da rainha levou ao casamento da infanta portuguesa com o próprio rei de
Castela. O rei para salvaguardar a independência de Portugal fez assinar o tratado
de Salvaterra de Magos, a 21 de Abril de 1383, que desinquietou o reino e o
cindiu em dois.
O compromisso
patriótico de D, Nuno foi desencadeado pela morte de D. Fernando, a 22 de
Outubro de 1383, em tempo que exigia necessidade urgente da independência ser
reconquistada. Considera-se hoje, talvez de modo apressado, como traidores os
que alinharam por D. Beatriz, mulher do rei de Castela, mas a escolha não foi
simples. Apesar de se sentir diferença entre os vizinhos ibéricos, evidente na
necessidade de guardar o que era de cada um, o conceito moral de Pátria não
existia formalmente e por isso não era bem claro nem estava assimilado nos
espíritos da época. A dinastia para muitos garantia conveniente expressão
histórica expressa na legitimidade real, julgada de acordo com o Tratado de
Salvaterra de Magos, conforme às regras em vigor, do lado de D. Beatriz. Para
outros, o sentido da identidade nacional ganhava força pois o reino de Portugal
era um conjunto de pessoas, uma Nação, com identidade e vontade próprias. Um
historiador escreveu que “o povo só se
descobre como tal quando tem que vencer colectivamente uma provação que a todos
importa”.
D. Nuno nas fases da vida, como
guerreiro, condestável, e depois monge carmelita, passíveis de provocar
perplexidade aos menos atentos ou avisados do passado, uma vez que a fama de
santidade poderá ser minorada pela gesta guerreira. Procuraremos abordar o tema
na sua circunstância, isto é, com atenção ao tempo e ao sentir da época.
Idealista, voluntarioso, de inteligência viva e personalidade vincada, viveu em
ambiente que auxiliou a formação de vincado pendor misticista próprio da época.
O modo de ser e sentir, de forte exaltação cavalheiresca e religiosa, era
contido por invulgar ponderação e elevada exigência moral. A conduta resultava
de prática diária que sem hesitação praticou ao longo da vida. Começou como
rapaz enérgico e corajoso com invulgar talento guerreiro. Místico e generoso
assumiu a responsabilidade de comandar pelo exemplo, empolgando e conduzindo os
companheiros à vitória pelo entusiasmo e determinação do seu comportamento. A
idade trouxe ponderação e clareza de propósitos, consolidadas pela prática da
disciplina e inteligência das decisões, a nortear as acções que realizou.
Reuniu com acerto, escassos meios e vontades disponíveis, por vezes contra a
opinião geral. Foi o líder certo nos momentos incertos.
A crise de 1383 – 1385
iniciou um longo período de confrontos entre os vizinhos ibéricos, saindo Portugal
vencedor das batalhas de Atoleiros, Trancoso, Real (de Aljubarrota) e Valverde
que permitiu a consolidação da independência portuguesa com a assinatura de paz
com Castela em 1411. Em perspectiva invulgar, por explicar, diremos que D. Nuno
não executou cruentas acções guerreiras nem comandou força de “mal querer”, pois actuou em guerra de
fidelidade. Não guerreou Castela em particular mas a favor da unidade da
Igreja, uma vez que Portugal optara pela obediência ao para de Roma, Urbano VI,
face ao antipapa de Avinhão, Clemente VII. A entrega do reino à coroa de
Castela poria Portugal em posição cismática no Cisma do Ocidente que durou 39
anos, de 1378 a 1417. A Santa Sé ao verificar a seriedade do propósito de
Portugal aderiu à revolução de 1383-1385 e concedeu direito ao uso do título de
Nação Fidelíssima.
O resultado das
campanhas que D. Nuno travou foi fruto de disciplina de outra natureza, que
exigia aos companheiros de armas virtudes e saberes próprios de guerreiros, mas
sobretudo a afirmação evidente de virtudes morais para “mais que guerreiros fossem homens e cristãos”. A guerra devia ser “querela justa em defender a nossa terra e
os nossos bens de quem os queria tomar pela força, contra Deus e contra o
direito”. O confronto guerreiro por natureza é um acto em que a paixão tem
primazia sobre a razão, sendo muito difícil manter na refrega “discernimento e são critério”, a evitar
excessos que causem sofrimento e males desnecessários. A atitude, invulgar na
conduta guerreira, de violência desnecessária, é pautada pela “razão da força”,
com registo em fontes coevas (da época), donde respigaremos factos relatados em
saboroso linguajar medieval:
- em relação ao
adversário “cuidava de prisioneiros e
feridos e não permitia que a sua gente danificasse aldeias ou searas,
protegendo mulheres, crianças e pobres”;
- certa vez “ durante quatro meses, por ocasião de
grande carestia, alimentou à sua custa 400 castelhanos, distribuindo 6.400
alqueires de trigo”;
- outra vez “mandou soltar uns noivos que os
companheiros haviam aprisionado e fez a sua festa e oficio, cantando os seus
nela. Ele mesmo tomou parte na celebração da boda, dizendo que assim cumpriu de
se fazer, pois o casamento era um dos sacramentos da Santa Igreja”;
- a fama de D. Nuno,
em particular o comportamento, mesmo junto dos castelhanos, deu origem ao
episódio que gostosamente partilhamos. Certo dia ao amanhecer, junto de
Cáceres, uma dezena de escudeiros o procurou sem sinal de resguardo ou
segurança. Disse-lhes D. Nuno “fostes
ousados em virdes assim sem primeiro haverdes seguro”, ao que responderam “Senhor, em atrevimento da vossa grã bondade
e muitas virtudes que Deus em vós pôs, fomos ousados em vir ante vós” . E o
que desejavam dele? “ nada, voltaram a
responder, nada que não outra coisa senão somente vê-lo, como já o havemos
visto”. Um historiador famoso
registou “ se D. Nuno não tivesse
existido, animado pela fé e heroicidade da sua atitude, a Nação portuguesa
poderia ter desaparecido em finais do século XIV”.
O sentir nacional, na
altura mal definido, ancorado no amor à terra de Portugal deu origem à
necessidade de a defender “de todo o
dano”. A consciência viva da nacionalidade para vingar necessitava dum
chefe para disciplinar o esforço de todos em torno de uma causa comum
configurada neste caso no líder provincial coevo D. Nuno Álvares Pereira.
Oliveira Martins considerou esta personagem “
a mais nobre, a mais bela figura que a idade média nos deixou” e que Eça de
Queiroz definiu “ de incomparável
grandeza”.
O
entendimento da aparente relutância de D. Nuno em contrair matrimónio obriga a
considerar a época como tempo de cavalaria, identificada no Concílio de
Clermont que determinava a toda a pessoa de “nascimento” o dever de aos 12 anos
jurar solenemente perante um bispo “defender
até ao fim os oprimidos, viúvas, órfãos e que as mulheres de nobre nascimento
deviam merecer cuidado especial”. O cavaleiro no início preocupava-se quase
só com “as manhas” da guerra, enriquecido depois com a defesa do evangelho e
dos fracos, dando origem a nova e depurada concepção de cavaleiro que orientava
a conduta pelas virtudes da cavalaria, consideradas prioritárias: primária
(de natureza guerreira); secundária (religiosa) e terciária
(social). A cavalaria insistia na prática da verdade, confiança, respeito pela
palavra dada e fidelidade aos compromissos assumidos, cuja omissão considerava
indesculpável. Autêntica paixão para muitos jovens, era fortalecida com famosas
novelas de cavalaria que referiam figuras, reais ou fictícias, de ilustres cavaleiros
que montados em corcéis velozes, iam à procura de aventuras edificantes. A
pureza aproximou DS. Nuno de Galaaz e tornou-o capaz de guardar em todos os
momentos a solidez dos seus sentimentos na perene juventude do coração,
expressa em desinteressada e generosa frescura que sempre o distinguiram.” A sua fé em Deus era chama em que ardia a
dedicação patriótica e energia de guerreiro. A religião era a raiz, virtude,
coragem, civismo e percurso da sua vida, iniciada com a revolução mística da
cavalaria” (Oliveira Martins). Os dotes guerreiros de D. Nuno eram
acompanhados por espiritualidade sincera, profunda, no Amor pela eucaristia e
Virgem Maria, trave mestra da sua vida interior. Assíduo à oração mariana,
jejuava em honra da Virgem Maria às quartas, sextas, sábados, vigílias das suas
festas e assistia diariamente a duas missas e recebia a eucaristia nas maiores
solenidades.
O estandarte eleito
como insígnia pessoal, que teria sido bordado por sua mãe, tinha imagens do
Crucificado, Maria Santíssima com o Deus Menino, dos patronos S. Tiago e S.
Jorge. Após um confronto enquanto os seus festejavam ruidosamente a vitória das
armas, ia em peregrinação aos santuários mais próximos, como em Atoleiros onde
no dia seguinte foi, descalço, render louvores ao Altíssimo em Santa Maria de
Assumar (próximo de Monforte), assim como antes e depois da batalha Real foi
encomendar e agradecer a Santa Maria de Seiça no condado de Ourém. Após
Valverde onde rezou, lutou e venceu mandou edificar o mosteiro de Nossa Senhora
do Vencimento no Carmo, em Lisboa.
II - RELIGIOSO
D,
Nuno após ter participado na tomada de Ceuta, com 63 anos, professou a 15 de
Agosto de 1423. Ao ser admitido no convento do Carmo, repartiu o que era seu,
perdoou dívidas e ficou sem nada. Trocou a seda pelo ”burel” (tecido grosseiro de lã) e recolheu ao isolamento duma cela
vazia. Praticou vida simples e austera ao serviço dos mais necessitados e
esmolou sete anos pelas ruas da capital do reino. Morreu no domingo de Páscoa
perante a família real em pranto ao som dos sinos que tocavam finados,
acorrendo enorme multidão chorosa que bradava ter morrido o Santo condestável.
A canonização
promovida sete anos após a morte, por D. Duarte, foi prosseguida pela ordem do
Carmo face a numerosos obstáculos. O padre Anastácio Ronci, postulador geral
dos carmelitas, introduziu o processo “de
tempos imemoriais” para o culto de D. Nuno, concluído em 23 de Dezembro de
1918, com o decreto “Clementíssimos Deos”
do papa Bento XV, que o escolheu como exemplo para os militares que combatiam
na I guerra mundial. As suas relíquias foram trasladadas numerosas vezes da
campa original para o templo do Carma. O postulador geral da ordem, padre
Filipe Amenos e Bonet conseguiu a reabertura da causa, graças ao milagre
ocorrido em Ourém em 2.000. O cardeal patriarca de Lisboa, a 23 de Janeiro de
2003, presidiu na igreja do Carmo à cerimónia de reabertura solene do processo
de canonização do Beato Nuno e a 2 de Abril desse ano, no templo do Santo
Condestável, em Lisboa, ao encerramento e envio do processo de canonização à
Santa Sé em Roma. Concluídas as investigações, durante o Consistório de 21 de
Fevereiro de 2009 o papa Bento XVI determinou que o beato Nuno fosse inscrito
no Álbum dos Santos, a 26 de Abril do mesmo ano. A “santificação” teve lugar na
praça de S. Pedro numa cerimónia de grande solenidade e alegria. A memória,
extensa, da sua exemplar conduta, evocada em inúmeros eventos, será oportunamente
recordada noutro texto.
A terminar recordamos
o oportuno texto de Eça de Queiroz (1871):
“ O país perdeu
inteligência e consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciência
em debandada e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única
direcção a conveniência. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos”, a que
acrescentamos, o Homem parece perdido de raízes, passado e sentimentos. Face a
preocupante e triste panorama seria oportuno aproveitar o exemplo partilhado
para reflectir, rever a conduta pessoal, ética e social, conforme recorda o
verso de Fernando Pessoa
“ Esperança consumada São Portugal em ser Ergue a luz da tua
espada para a estrada se ver”.
PARA SABER MAIS
- ANÓNIMO, Autor, séc.
XIV, Crónica do condestável de Portugal,
Ed. Sá da Costa, 1937;
- COUTINHO, Bernardo
Xavier, Iconografia e bibliografia condestabrianas, I A C, 1971;
- MILITAR, Revista, O sexto centenário da batalha de Atoleiros,
nº 5 (pág.263 a 298), 1984;
-PIMENTA, Belisário, Nun´ Álvares - chefe militar, Biblioteca
Estudos Livres- V, Ed. Academia Coimbra, 1932;
Sem comentários:
Enviar um comentário